Na esteira do trabalho
psicológico ou psicanalítico, um tema que insiste em surgir é a oposição entre
a individualidade, individuação, egoísmo, de um lado e a interação, influência
mútua, altruísmo de outro.
Na relação com o outro, dentro de
nossas possibilidades, ora podemos construir nossa individuação (feliz termo
junguiano), ora operamos a construção da interação com o outro.
Esta interação se dá de forma
necessária, seja do ponto de vista ôntico ou ontológico, seja do ponto de vista
do desenvolvimento neuropsicomotor de uma criança ou do desenvolvimento
emocional do adolescente, do adulto, do idoso... Não há como se furtar à
interação, precisamos do outro, desejamos o outro, desejamos que o outro nos
deseje, precisamos contar quem somos e ouvir exemplos de quem os outros são e
como vivem, e por aí vai...
O discurso capitalista moderno,
no entanto, com seus produtos tamponadores da falta (desde o banal chocolate
até a mais elaborada boneca inflável), substituidores da presença do outro (siri
fala com você), nos põe em contato com uma suposta “independência”, pois quanto
mais “independente” for o sujeito, mais ele consome estes tamponadores e
substituidores. Sob o discurso da independência e da auto-suficiência, muitas
pessoas vivem vidas isoladas de uma interação.
Este exemplo não está só em
pessoas que passam horas em frente ao computador sem falar ou ver ninguém, isto
se inscreve nas relações humanas superficiais, onde o outro também é colocado
no lugar de objeto tamponador, produto substituível, por ser igual a uma série
de outros consumidores desenfreados, com o mesmo corte e tom de cabelo, com as
mesmas roupas e os mesmos pensamentos.
O consumo degrada as relações,
torna superficiais as emoções. É comum a intolerância com o outro, e o desejo
de que o outro supra minhas necessidades, como um produto o faria, como vemos
nas conversas entre casais, assunto de que tratou Christian Dunker em seu
artigo Diálogos impossíveis da última
Mente & Cérebro, chamando a atenção,
entre outras coisas, para situações discursivas patológicas em que há uma
grande alienação discursiva entre os integrantes do casal, um levando o outro a
dizer sempre mais uma vez algo que machuca, que corrói. Há, no cerne destes diálogos
perversos, uma cobrança sobre o outro, uma incapacidade de lidar com as falhas
de si e do outro, um inconformismo com o fato de que não se pode ser ou ter
tudo, uma esperança de que uma discussão possa sanar aquilo que o outro não me
dá. Ou seja, há nesses diálogos, uma perversa cobrança de que o outro seja o
objeto que me satisfará. E ao tratar o outro como objeto, o discurso patológico
não leva a nada.
Em um artigo da Cult de junho,
Vladimir Safatle contrapõe dois conceitos, a ocorrência e o acontecimento,
explicando que a ocorrência seria tudo aquilo que é vivido sem intensidade, sem
profundidade, como que pra preencher a vida, pra colorir o dia-a-dia, enquanto
que acontecimentos seriam fatos marcantes, ambivalentes, que produzem angústia,
sonhos, memórias corporais. Safatle evoca e complementa Hegel dizendo: “Hegel
dizia que os momentos de felicidade são páginas em branco na história. Talvez
seja o caso de completar afirmando que só os neuróticos querem uma vida feliz,
com sua história desprovida de acontecimentos. Para além de uma vida feliz, há
uma vida plena, que é algo outro.”
Em ambos os artigos, tanto na
ideia de não entrar em uma desagregação da retórica amorosa, quanto na ideia de
vivenciar acontecimentos que produzem profundidade de emoções, está contida a
ideia de uma existência autêntica, e também a ideia de constituição do sutil
equilíbrio entre a individualidade e a interação.
Penso que a despeito de a neurose
provocar por si só o sentimento ou a necessidade de que o outro me complemente,
a vontade de que haja algo para suprir minhas faltas, a lógica ou a gramática
do discurso capitalista enfatizam e ampliam a força deste aspecto neurótico, ou
até promove a transformação em algo perverso, entrando na chave da objetificação,
dessubjetivação, da inautenticidade. É com esse discurso que abre-se a possibilidade
de que o ser humano seja só mais um, como tantos outros, seja só número, não
tenha individualidade, profundidade, seja, em última instância substituível,
quase sem valor.
É necessário e urgente ver a
importância da interação saudável, da busca de si, da recusa de se tornar
massa. É necessário trabalhar a potência de se engajar em eventos que podem
provocar sentimentos de angústia, de ambivalência, de falta, para que haja
força suficiente para mudanças tanto internas e individuais, quanto sociais.
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