sábado, 1 de fevereiro de 2014

NYNPHOMANIAC

Em Nynphomaniac temos um Lars Von Trier novamente tocante. Utilizando a estética brechtiana, já familiar ao diretor, não pretende hipnotizar ou absorver, e sim provocar um distanciamento no espectador, para que este possa refletir sobre a encenação.
Sem tentar repassar os capítulos do filme, mas imaginando uma história, um caso clínico, se quiserem, pode-se pensar no seguinte:

Joe, quando criança, recebe o amor do pai, numa relação que se por um lado oferece uma base de construção de amor, por outro não permite uma introdução dela na cultura, como veremos adiante. Joe não recebe muita atenção ou amor da mãe, quase nenhum. Ela fica com o amor do pai só pra si, um pai que não consegue investir amor em sua deprimida esposa, que não tem uma troca afetiva com nada nem com ninguém, plays solitaire.

Com o investimento do amor paterno, Joe cresce. No momento de suas investigações e experiências sexuais infantis, Joe parece não passar por nenhuma espécie de repreensão, muito pelo contrário, ela é quase incentivada a viver livremente suas experiências.

No filme, a cena da brincadeira no banheiro é muito emblemática, pois há alguns elementos essenciais pra pensar os destinos da pulsão em Joe. Ela brinca livremente com a amiga, num recinto afastado dos olhares potencialmente repreendedores de adultos, num recinto onde é comum tirarmos nossas roupas e nos despirmos dos pudores, ela experimenta, junto com a amiga, sensações prazerosas (talvez as primeiras da fase genital). É uma cena que pode remeter a qualquer brincadeira sexual infantil de qualquer espectador, pode ser comum, no entanto o que ocorre depois, o pai não deixando que a mãe repreendesse Joe e a amiga, é que mostra onde se inicia um problema para a vida pulsional de Joe. A repreensão dos atos sexuais na infância serve para inserir a criança na cultura, servem para delimitar destinos pulsionais. Com uma delimitação do prazer, a pulsão pode se orientar para a cultura, para a auto-reflexão, mas sem esta delimitação, a pulsão corre livremente com o único destino de obtenção de prazer.

Isto pode ser confirmado quando vemos que Joe mal compreende as ilustrações metafóricas de Seligman, ou seja, pouco destinou sua pulsão para a cultura, e parece nunca ter refletido sobre si.

Aliás é também com esta reflexão sobre a pulsão sexual ser desenfreadamente satisfeita (entre outras reflexões) que Freud pensa na pulsão de morte, ou seja, uma orientação da pulsão que culmina com algo improdutivo e morto, pois se pensarmos no que Joe obtém pra si com os atos sexuais desenfreados, temos um saldo de destruição e tristeza, e nenhum contentamento ou satisfação, apesar do gozo orgânico, primitivo. Sexo e não amor.

O pai de Joe extrai prazer da vida, fala com prazer, é um objeto sexual (objeto no sentido de meta, objetivo). Joe se fixa no pai, que não a refreia, que não a interdita. A não interdição da troca amorosa entre os dois passa, por associação, a uma não interdição sexual, no âmbito da fantasia. Joe se fixa no pai amorosa e sexualmente, e talvez ame o pai através do sexo com outros homens.

Joe não conhece o amor por outro homem que não o pai, é impedida de amar, impedida pelo pai. Joe busca nos homens algo, sem saber o que, é sua pulsão tentando encontrar um local melhor onde se fixar para sair de um sintoma que a destroi. Atuações atrás de atuações, sem reflexão, sem elaboração, sem possibilidade de ressignificação ou investimento significativo.

Ela não consegue dimensionar o amor ao longo de toda esta parte do filme, não pode ainda unir amor e sexo. Na cena do ingrediente secreto, ela ainda não compreende, rechaça a ideia, se rebela contra o amor, sem saber o que é. E quando acha que encontrou o amor, diz, eu não sinto nada.

É patente a monotonia, o desinvestimento, de que sofre Joe nas interações sexuais com seus parceiros. Quando seu pai morre, abre-se a possibilidade de luto, abre-se então a possibilidade de elaboração, mas que fica girando em falso, até que ela encontra o Seligman.

Uma excitação sexual que precisa tender ao zero, à eliminação. Fazendo jus à denominação de trilogia da depressão junto com os filmes Antichrist e Melancholia, Nynphomaniac nos leva já em seu primeiro volume a refletir sobre os destinos da pulsão, na força destrutiva da pulsão de morte. Um desejo de não ser mais importunado pelas excitabilidades e poder se manter imóvel. É como Seligmann encontra Joe.

Seligman encontra Joe num momento de quase entrega para o inorgânico. Ele empresta seu desejo a ela, que então, por ele, se levanta e segue para o que se pode chamar de vivência analítica.

A metáfora promovida por Seligman permite a narrativa inicialmente desafetada, mas progressivamente mais implicada... Nesta parte do filme Joe ainda não habita sua carne, ainda está vazia e caótica.

Este homem oferece a Joe as metáforas necessárias para o início de uma fala. A fraqueza da voz de Joe, seu pouco tônus, em todos os momentos de sua vida, ilustram a fala impossibilitada.

Seria inclusive interessante ver uma mudança no tônus vocal da protagonista em diálogos finais com Seligman na segunda parte. Seria um bom emblema de um corpo encarnado, almado.