sábado, 27 de julho de 2013

Sobre o filme "Dans la maison"

Um filme de François Ozon, adaptado da peça de Juan Mayorga, dramaturgo, matemático e professor de filosofia espanhol, "El chico de la última fila".
Os personagens principais são o professor de francês e literatura francesa Germain (Fabrice Luchini), sua esposa curadora de uma galeria de artes Jeanne (Kristin Scott Thomas), Raphael Artole pai (Denis Mènochet), Raphael Artole filho (Bastien Ughetto) e Esther Artole (Emmanuelle Seigner) - a família de classe média, e Claude Garcia (Ernst Umhauer) - o aluno da última fila.
O Liceu Gustave Flaubert, a casa dos Artole, a casa de Germain e Jeanne, e a galeria de artes Labirinto do Minotauro são os cenários principais.
Germain é nitidamente um professor entediado com seu cotidiano, dizendo que passou as férias lendo Schopenhauer e reclamando para a esposa que pegou a pior das classes para lecionar.
Algo de curioso é a tarefa que Germain passa aos seus alunos, ele pede que os adolescentes de 16 anos descrevam 48 horas de seus fins de semana, o que sugere um aspecto voyeurista de Germain, e é com enorme satisfação que dentre uma pilha de redações sem conteúdo algum, Germain lê a descrição de Claude sobre seu fim de semana na casa dos Artole.
Claude Garcia consegue a atenção e desperta a curiosidade de Germain não só com sua audaciosa descrição dos costumes provincianos da família de classe média, mas também com a instigante palavra ao final da redação: continua...
Germain, sob o apelo do professor, do maestro, incita Claude a melhorar sua escrita, ganhar estilo, desejando sempre mais dos cada vez mais bem escritos capítulos realistas de seu aluno. Claude, por sua vez, segue à risca as orientações do professor de quem recebe livros emprestados de sua biblioteca particular em troca de mais capítulos. Ocorre aqui uma espécie de relação de servidão, ou de sadomasoquismo em que ora Claude é achincalhado com as críticas mordazes de seu algoz e mantém-se satisfazendo-o com sua escrita, ora Germain é criticado profundamente nas narrativas de Claude e se mantém fiel leitor da novela de seu aluno.
Uma certa perversão perpassa todo o filme, seja pelos olhares voyeurs de Claude dirigidos à mãe de Rapha, e depois à mulher de Germain, seja pela relação quase incestuosa que vai se criando entre os amigos-irmãos Claude e Rapha, seja pela relação incestuosa-sado-masoquista entre Germain e Claude, ou ainda pela presença simbolicamente incestuosa no nome de pai e filho.
Em dado momento, Claude revela que escolhera Rapha para entrar em sua casa pois notara que na saída do colégio, os pais de Rapha sempre o esperavam de mãos dadas... E aí desdobra-se a razão pela qual Claude desenvolve este interesse pela vida do colega... Não fosse pelo prazer que o colorido da vida dos outros dá a Claude, ele teria a triste rotina de levantar, pôr seu uniforme, tirar o pai paraplégico da cama e colocá-lo em sua cadeira de rodas, e seguir o dia de forma completamente enfadonha e difícil.
Em meio a tudo isso, Germaine vai à galeria onde sua esposa expõe trabalhos com o tema "a ditadura do sexo", sexo que Germaine e Jeanne param de fazer quando se entretêm com os capítulos de Claude, direcionando sua libido para esta atividade escopofílica... sexo que Esther faz sem nenhum gosto com Raphael pai, exemplificando momentos em que seja na presença ou ausência do sexo, ele parece não ter sentido nem em um nem em outro casal. 
Os casais Jeanne-Germain e Esther-Raphael pai movem-se de formas diferentes com a presença de Claude, mas assim como um filho suscita diferentes movimentos quando se põe entre diferentes tipos de pais.
A quarta perede teatral se faz presente ao encerrar de cortinas final...
Afinal... a literatura, o cinema, o teatro, as séries de TV, as fofocas, entre poucas outras coisas, cumprem também a função de servir de meios para estar dentro de outras casas, espiar buracos de fechaduras, ser o mosquito em meio a diálogos... O voyeurismo surge desde o momento infantil em que queremos saber o que ocorre entre as quatro paredes do quarto para onde nossos pais vão sozinhos todas as noites...






quarta-feira, 17 de julho de 2013

Entre a individualidade e a interação


Na esteira do trabalho psicológico ou psicanalítico, um tema que insiste em surgir é a oposição entre a individualidade, individuação, egoísmo, de um lado e a interação, influência mútua, altruísmo de outro.

Na relação com o outro, dentro de nossas possibilidades, ora podemos construir nossa individuação (feliz termo junguiano), ora operamos a construção da interação com o outro.

Esta interação se dá de forma necessária, seja do ponto de vista ôntico ou ontológico, seja do ponto de vista do desenvolvimento neuropsicomotor de uma criança ou do desenvolvimento emocional do adolescente, do adulto, do idoso... Não há como se furtar à interação, precisamos do outro, desejamos o outro, desejamos que o outro nos deseje, precisamos contar quem somos e ouvir exemplos de quem os outros são e como vivem, e por aí vai...

O discurso capitalista moderno, no entanto, com seus produtos tamponadores da falta (desde o banal chocolate até a mais elaborada boneca inflável), substituidores da presença do outro (siri fala com você), nos põe em contato com uma suposta “independência”, pois quanto mais “independente” for o sujeito, mais ele consome estes tamponadores e substituidores. Sob o discurso da independência e da auto-suficiência, muitas pessoas vivem vidas isoladas de uma interação.

Este exemplo não está só em pessoas que passam horas em frente ao computador sem falar ou ver ninguém, isto se inscreve nas relações humanas superficiais, onde o outro também é colocado no lugar de objeto tamponador, produto substituível, por ser igual a uma série de outros consumidores desenfreados, com o mesmo corte e tom de cabelo, com as mesmas roupas e os mesmos pensamentos.

O consumo degrada as relações, torna superficiais as emoções. É comum a intolerância com o outro, e o desejo de que o outro supra minhas necessidades, como um produto o faria, como vemos nas conversas entre casais, assunto de que tratou Christian Dunker em seu artigo Diálogos impossíveis da última Mente & Cérebro, chamando a atenção, entre outras coisas, para situações discursivas patológicas em que há uma grande alienação discursiva entre os integrantes do casal, um levando o outro a dizer sempre mais uma vez algo que machuca, que corrói. Há, no cerne destes diálogos perversos, uma cobrança sobre o outro, uma incapacidade de lidar com as falhas de si e do outro, um inconformismo com o fato de que não se pode ser ou ter tudo, uma esperança de que uma discussão possa sanar aquilo que o outro não me dá. Ou seja, há nesses diálogos, uma perversa cobrança de que o outro seja o objeto que me satisfará. E ao tratar o outro como objeto, o discurso patológico não leva a nada.

Em um artigo da Cult de junho, Vladimir Safatle contrapõe dois conceitos, a ocorrência e o acontecimento, explicando que a ocorrência seria tudo aquilo que é vivido sem intensidade, sem profundidade, como que pra preencher a vida, pra colorir o dia-a-dia, enquanto que acontecimentos seriam fatos marcantes, ambivalentes, que produzem angústia, sonhos, memórias corporais. Safatle evoca e complementa Hegel dizendo: “Hegel dizia que os momentos de felicidade são páginas em branco na história. Talvez seja o caso de completar afirmando que só os neuróticos querem uma vida feliz, com sua história desprovida de acontecimentos. Para além de uma vida feliz, há uma vida plena, que é algo outro.”

Em ambos os artigos, tanto na ideia de não entrar em uma desagregação da retórica amorosa, quanto na ideia de vivenciar acontecimentos que produzem profundidade de emoções, está contida a ideia de uma existência autêntica, e também a ideia de constituição do sutil equilíbrio entre a individualidade e a interação.

Penso que a despeito de a neurose provocar por si só o sentimento ou a necessidade de que o outro me complemente, a vontade de que haja algo para suprir minhas faltas, a lógica ou a gramática do discurso capitalista enfatizam e ampliam a força deste aspecto neurótico, ou até promove a transformação em algo perverso, entrando na chave da objetificação, dessubjetivação, da inautenticidade. É com esse discurso que abre-se a possibilidade de que o ser humano seja só mais um, como tantos outros, seja só número, não tenha individualidade, profundidade, seja, em última instância substituível, quase sem valor.

É necessário e urgente ver a importância da interação saudável, da busca de si, da recusa de se tornar massa. É necessário trabalhar a potência de se engajar em eventos que podem provocar sentimentos de angústia, de ambivalência, de falta, para que haja força suficiente para mudanças tanto internas e individuais, quanto sociais.

 

domingo, 14 de julho de 2013

O desejo

É o desejo, muito mais que a disciplina, que move o indivíduo.
Sandra Edler

Quando assisti esta semana o documentário sobre Hannah Arendt, dentre uma série de mobilizações internas, que certamente passaram pelas implicações da banalização do mal,  uma delas versou sobre o desejo, o meu e o de Hannah.

Primeiro subitamente desejei saber mais sobre a vida de Hannah, sobre a primeira e segunda guerras, sobre Eichmann, sobre a história judaica e sobre o nazismo; em segundo lugar percebi que a forma como ela conduz sua escrita, o tempo que ela leva para deixar sair seu texto, de modo que uma das editoras do New Yorker disse: “Tolstói escreveu Guerra e Paz nesse tempo”, me fez crer que o que a movia era certamente o desejo e não a disciplina.

Eu nunca tive tanto interesse, desejo, por compreender melhor alguns aspectos e minúcias do que envolve a relação entre judeus e nazistas na segunda guerra, tema obrigatório de estudo para conhecimentos gerais, para vestibular, quanto agora... Pois é... nunca me movi para saber mais até ver este filme.

Tinha desde maio, possivelmente, a edição da Serrote em minha cabeceira, aquela que traz em sua capa um detalhe da arte de Eugenio Hirsch do livro O grande Gatsby, um dos que ainda não tive desejo de ler, ou ver o filme com o Di Caprio. Enfim... tinha esta edição com uma marcação num texto de Didi-Huberman, e a marcação estava ali, para ser o próximo texto a ser lido obrigatoriamente, por ser Didi-Huberman, mas eu não lia, nem sabia bem do que iria se tratar, afinal, o título era “Cascas”.

Hoje devorei Didi-Huberman, peguei, depois de ter lido ininterruptamente conteúdos de almanaque como a parte das grandes guerras do Atlas da História do Mundo da National Geographic e a Super Interessante, série grandes mistérios, sobre o nazismo. O texto de Didi-Huberman era sobre Auschwitz-Birkenau.

E me alimentou... O filósofo, depois de citar um trecho de O despovoador, de Samuel Becket, expõe, com muita delicadeza e profundidade, aquilo que se pode ver ainda onde supostamente não há mais nada a ser visto, lança um olhar arqueológico, mediado pela lente de sua câmera, sobre um local que lembra e tenta esquecer o horror. Escreve com toda poesia...

O que move a escrita dele, a de Hannah e a minha, deste texto, é o desejo.


Que desejo te move?