Outro dia meu irmão perguntou-me porque algumas pessoas aparentemente tranqüilas se transformam em monstros ao volante. Na hora não refleti sobre o assunto, mas vou tentar algo aqui.
O indivíduo que ao andar nas calçadas esbarra em outro e pede desculpas, quando sentado frente ao volante, enfurece quando um esbarrão ou a possibilidade premente dele ocorre.
Uma das hipóteses é a de que dentro de um veículo, um certo poder é conferido ao indivíduo. Um poder de domínio e controle sobre a máquina, um poder de saber interagir perfeitamente com aquele invólucro metálico, e ainda de saber se movimentar perfeitamente no asfalto. Esse poder não existe no homem despido de uma armadura que esbarra em outro.
Suponho que o homem que é investido desse poder quase bélico e desse pleno saber sobre seu espaço automobilístico se julgue único e além disso perca a noção de que é apenas humano, pois sua armadura metálica torna-se parte de si.
Um homem armado é mais corajoso a enfrentar duelos do que um homem despido de armamento, ou armadura. E não só mais corajoso como mais desafiante.
Um homem corajoso, desafiante, armado, único, quando é desafiado em seu poder por alguma outra máquina que ultrapassa em sua frente, julgando ser ele menor, mais frágil, menos potente, é suficiente para colocá-lo louco para provar sua capacidade sobre-humana.
Este homem-máquina não vê homens despidos de armadura, vê outros homens-máquina que disputam seus espaços, suas colocações nas filas do trânsito, suas acrobacias automobilísticas.
Fora de suas armaduras, voltam a ser cordiais humanos que sorriem ao se esbarrarem, pois sabem-se carne e osso.
3 comentários:
a observação é genial. o carro é mesmo um equipamento bélico. pesquisa recente relaciona venda de carros de grande porte, tipo pick-up e similares, a compradores com baixa auto-estima.
Há motoristas educados, contudo. Vejo que em qualquer área das relações humanas, seja no trabalho, no lar, nas calçadas ou no trânsito é possível domarmos nosso egoísmo infantil e usarmos um pouco da boa educação que recebemos - isso se a recebemos. Aí está a importância da educação infantil com cuidado especial para as relações interpessoais, pois somos: nós, as coisas e as pessoas, e não apenas nós e as coisas. Teu texto, Daniela, é um achado. Você tem uma boa visão do cotidiano.
Pensei sobre a expressão "amor no trânsito". Mas numa metrópole que está próxima de um colapso irreversível, não sei se isso seria uma realidade vislumbrável: de dirigir com amor. Longe das capitais - e até mesmo nelas em alguns casos isolados - há gente que coloca amor no volante. Até mesmo a sensação de poder proporcionada pelo veículo pode ser usada, sim, para fins pacíficos. Tudo é uma questão de vontade de potência bem direcionada.
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